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Petrônio Andrade Gomes
Findo o curso secundário, inicia-se a grande jornada do Dr. Augusto Leite. Embarcando no vapor Murupi em direção ao Rio de Janeiro em 1903, para fazer o curso de medicina, forma-se no dia 2 de janeiro de 1909, com a tese “Da contra-indicação renal ao emprego do salicilato de sódio”, sob a inspiração do prof. Miguel Couto. Nas férias que teve durante o curso, passava em Riachuelo, onde ajudava o irmão, Sílvio Leite, já médico, em pequenas operações. Em 3 de maio de 1909, acompanhado pelos amigos Gonçalo Rollemberg, Acioli, Manoel Cruz e José de Faro, segue para Capela, instalando-se no sobrado do sr. José Luiz Coelho Campos. Dois dias após, recebe seu primeiro chamado, nada mais nada menos que do Sr.Leandro Maciel. Montado a cavalo, dormiu no engenho Entre Rios, voltando a Capela no outro dia. Foi em Capela que se entregou de corpo e alma ao estudo da medicina, propiciado pela escassa clientela de então. Permaneceu lá por tres meses. Ganhou experiência e segurança. Mudou-se para Maroim, também com estadia curta, por volta de 100 dias. Em novembro já estava em Aracaju, cidade sem transporte, sem calçamento. As visitas eram feitas a pé, vestido de fraque, bengala e chapéu. A clínica era feita através das mãos, dos olhos, ouvidos, fazendo uso também do olfato e até do gosto. Chegou a operar em residências, em casebres de palha, à luz de querosene.
Em 1913 começa a trabalhar no Hospital Santa Isabel, a convite do desembargador Simeão Sobral. Único hospital existente em Aracaju, com apenas duas enfermarias, sem raios X, laboratório, autoclave, com pouco instrumental cirúrgico, alguns vidros de ventosas e um termo-cautério. Envolto àquela época no mais completo caos, crianças e adultos misturavam-se, não importando as doenças que elas carregavam consigo. A única separação era pelo sexo. Iluminação adequada, higiene, nem pensar! Eram realizadas apenas pequenas intervenções cirúrgicas, aqui e acolá uma amputação. Operava-se na própria sala de curativos, numa mesa de lastro de madeira. Segundo Dr. Augusto, era o que havia de mais moderno em Sergipe… Só para imaginar quão anti-higiênico era aquele nosocômio, o Dr. Pimentel Franco (chefe do Serviço de Mulheres) visitava a sua enfermaria acompanhado de um serviçal portando um fogareiro, o qual exalava incenso ou alcatrão, para afastar o terrível odor.
Viaja para a Europa em junho do mesmo ano, passando 6 meses em Paris, onde toma mais gosto pela Clínica Cirúrgica. Retorna a Sergipe com algum material cirúrgico, reiniciando o trabalho no mesmo Hospital Santa Isabel, onde criou o Serviço de Clínica Cirúrgica. Enfronhou-se na lide cirúrgica, aperfeiçoando-se em cadáveres e com as dores dos pacientes.
Em 9 de novembro de 1914 faz sua primeira laparotomia, fato histórico para a medicina sergipana. O anestésico era o clorofórmio, os ajudantes eram colegas (Silvio Leite, Theodureto, Aristides Fontes, Josaphat Brandão, Carlos Menezes, Jessé Fontes, Moacyr Leite) apanhados na rua ou mesmo nos consultórios. Realizou neste Hospital mais de 400 laparotomias. Em 1918 viu-se envolvido num rumoroso caso médico, degladiando-se com o Dr. Helvécio de Andrade, que tomou como algoz. Defendeu-se e partiu para o ataque sem ter sido acusado, foi à imprensa e aos tribunais, trocou correspondência com sumidades médicas de outros estados e colegas da cidade. Desgastado pelo caso, mudou-se para Recife por alguns anos. De volta a Aracaju, reiniciou seus trabalhos como cirurgião, até que numa noite, durante um jantar com médicos em homenagem ao Dr. Paulo Parreiras Horta, estando presente o Governador do Estado, Maurício Graccho Cardoso, definiu-se pela construção do “meio cirúrgico”, tão almejado pelo nosso ilustre colega. Com a pedra fundamental colocada em 1924, inaugurado oficialmente em 2 de maio de 1926 e de fato em julho de 1926 com apenas 6 médicos, construído pedra por pedra sob o olhar vigilante e atento do Dr. Augusto, o Hospital de Cirurgia é mais um fato histórico para a medicina sergipana.
Mesmo com a inauguração do Hospital de Cirurgia não deixou de operar no H. Santa Isabel, embora com dedicação maior ao primeiro, algo bastante natural. Ora, com a construção de um novo hospital em Aracaju, com capacidade para fazer cirurgias de alta complexidade para a época, é óbvio que houvesse diminuição do movimento operatório no Hospital Santa Isabel. Em virtude disso, a direção do mesmo, tendo à frente o Almirante Amynthas José Jorge, ao lado de outros membros, como os Srs. Austeclino Rocha, Guilhermino Chaves de Resende, Guilherme Nabuco Maciel, em reunião extraordinária do Conselho Administrativo em 1º de outubro de 1926, resolveu extinguir a “alta cirurgia”, como se denominava as cirurgias de grande porte de então, aumentando os leitos de clínica médica. Tomaram o máximo cuidado em comunicar tal medida ao Dr. Augusto Leite, em especial, devido aos relevantes serviços que prestara ao hospital, deixando claro que “o grande cirurgião” continuaria “a dispor incondicionalmente do referido Hospital”. Tal fato desagradou profundamente o grande cirurgião, respondendo com uma carta em desagravo a tal medida, jurando que nunca mais poria os pés naquele Hospital. Isso mostra o orgulho e a forte personalidade do Dr. Augusto, que não admitia ser contestado. Já no Hospital Cirurgia, em 22 de março de 1927 realiza a primeira histerectomia total por via vaginal e em 5 de maio do mesmo ano a primeira mastectomia com limpeza dos gânglios axilares. Daí por diante, só conquistas: a Maternidade Francino Melo, onde em 13 de junho de 1931 nasce a primeira criança, que ganha o nome de Maria Augusta; serviços de radioterapia, radiologia, medicina e cirurgia experimental, Centro de Estudos, anátomo-patologia (aonde chegou a possuir mais de 2000 peças). Defensor intransigente da criança, instala em 24 de junho de 1933 o Instituto de Proteção e Assistência à Infância de Sergipe. Também é de sua responsabilidade o Serviço de Assistência Obstétrica Domiciliar.
Mais anos se passam e eis que surge Dr. Gileno Lima para quebrar o orgulho do mestre. Por dois anos, pacientemente, tenta convencer o amigo e admirador Dr. Augusto a retornar ao H. Santa Isabel. E consegue! No dia 9 de novembro de 1964, trazido pelo diretor do H. Santa Isabel, o inesquecível Dr. Gileno Lima, o grande cirurgião refaz a mesma cirurgia que fizera há 50 anos, retirando um grande fibroma uterino. E vem o gesto nobre de reconhecimento e veneração: doa ao Hospital Santa Isabel o “Bisturi de Ouro” que havia recebido em 1959 da classe médica sergipana, em comemoração ao seu cinqüentenário de formatura. Gileno recebe o “bisturi” e o coloca num nicho em parede do referido Hospital. Nas futuras reformas do hospital, paredes foram derrubadas mas o bisturi foi guardado. Em 2007, em visita ao Hospital, membros da Academia Sergipana de Medicina ( Drs. Lúcio Prado, Antônio Samarone, Hamilton Maciel e eu ) descobriram o bisturi, cuidadosamente guardado por uma antiga funcionária do Hospital, dona Helena, numa gaveta de sua mesa de trabalho, envolto por um papel.
Esse bisturi foi gentilmente doado pelo Dr. José Carlos Pinheiro (atual diretor do Hospital) à Academia Sergipana de Medicina, orgulhosamente trazido por mim ao Museu Médico da Somese, onde repousa. Paralelo à sua carreira médica, enfronhou-se pela política, chegando a ser senador constituinte, chefe de partido político, com ação destacadíssima. Seus embates na tribuna eram sempre escorreitos, límpidos. Mas a medicina foi mais forte, optando por abandonar a política em 1937, para gáudio nosso. Sua maior obra foi, sem sombra de dúvida, o Hospital Cirurgia. Era sua maior paixão, inegavelmente.
Enquanto vida e saúde teve, ia todos os dias ao Hospital, com seu corpo franzino e pequenino em altura, mas com uma alma gigantesca, a percorrer todas as dependências, olhando tudo e a todos, inquirindo e cobrando. Nascido em 1886 em Laranjeiras, faleceu em 1978, em Aracaju, com 91 anos, e está sepultado no Cemitério Santa Isabel.
Acad. Petrônio Andrade Gomes
Da Academia Sergipana de Medicina
Lúcio Antônio Prado Dias
Mário Cabral, intelectual sergipano de saudosa memória, que adotou a Bahia para viver, no livro “Jornal da Noite” disse: “Porque o horrível da vida não é a morte em si mesma. É o apagamento do seu nome, da sua história, da sua lembrança, do que você fez, amou ou sofreu. É o esquecimento, a diluição da imagem, a dispersão do saber como se fora um sacrário violado”. Outro sergipano, Thomaz Cruz, luminar da medicina brasileira, que emprestou à Bahia ciência e inteligência, contribuindo para o desenvolvimento científico e cultural daquele estado, na apresentação do livro “Perfis do meu apreço”, de sua autoria, demonstra toda a preocupação com a preservação da memória: “A sociedade atual, seja em que âmbito for, está carecendo de paradigmas. Percebe-se a ausência de modelos a imitar, a falta de exemplos a seguir, a necessidade de padrões”.
O sentimento contido nas expressões de Mário e Thomaz, no meu entender, justifica o lançamento do Dicionário Biográfico de Médicos de Sergipe – séculos XIX e XX. Para sua concretização, passaram-se quatro anos de pesquisa. Da obra memorável de Armindo Guaraná, compusemos a base, que foi atualizada com informações obtidas em fontes documentais, livros e jornais, bibliotecas e arquivos públicos e privados, igrejas, cartórios e cemitérios, visitas a cidades interioranas e suas prefeituras, informações colhidas com amigos e familiares e registros do Conselho Regional de Medicina de Sergipe.
Pelos objetivos a que se propõe, é evidente que ele não se encerra nesta publicação, ao contrário, apenas inicia a caminhada e instiga a imaginação. Por certo futuras edições virão, para torná-lo o mais abrangente possível.
Recuperar nomes de médicos perdidos nas trevas não foi tarefa fácil, mas extremamente gratificante. As dificuldades para o levantamento de dados, que pareciam intransponíveis, foram gradativamente sendo superadas. E as informações estão agora à disposição de todos, em primeira edição. Decidimos acrescentar um capítulo dedicado aos médicos com verbetes incompletos, na esperança de que a sua leitura possa despertar a curiosidade e o interesse dos leitores que tenham maiores informações e possam vir a contribuir para o seu aperfeiçoamento.
Um fato se destaca na análise de seu conteúdo, observando os registros de aproximadamente quinhentos médicos que tiveram suas biografias levantadas na forma de verbetes: a esmagadora maioria colou grau pela bicentenária Faculdade de Medicina da Bahia. Para compreender a importância desse fato, somente no século XIX, no período compreendido entre 1808 (ano de fundação da Faculdade) e 1900, segundo registros oficiais da instituição, 124 formandos eram procedentes de Sergipe, sendo o estado brasileiro que mais enviou estudantes para a Faculdade, excetuando-se obviamente a própria Bahia. A proximidade geográfica naturalmente foi um fator preponderante para a determinação desse índice. O mesmo dado se observou na primeira metade do século XX.
Vale ressaltar que a participação dos sergipanos não se restringiu apenas ao objetivo único de receber o “anel de doutor”. No que tange à Faculdade de Medicina da Bahia, Sergipe ofereceu inestimável contribuição, com vários de seus filhos, após concluírem o curso, honrando o quadro docente da instituição. Assim aconteceu com o primeiro sergipano formado em medicina na Bahia, em 1831, ano em que Dom João VI abdicou a Coroa do Brasil, assumindo o governo a Regência Trina Provisória. Refiro-me a Manoel Ladislau Aranha Dantas, natural de São Cristóvão, que foi professor Catedrático(Lente) de Patologia Externa. Ele foi Lembranças que não fenecem ainda o segundo memorialista da faculdade, em 1855. Em 1866, já em idade avançada, serviu na Guerra do Paraguai, nos hospitais de sangue. Seu quadro em óleo sobre tela faz parte da Galeria dos Professores Catedráticos e Titulares da Sala da Congregação da Faculdade de Medicina da Bahia.
Outros sergipanos também foram professores da Faculdade de Medicina da Bahia: João Francisco de Almeida, Jerônimo Sodré Pereira, Manoel Dantas, Guilherme Pereira Rebelo, Josino Corrêa Cotias, José Rodrigues da Costa Dória, Anita Guiomar Franco Teixeira, Maria de Lourdes Burgos e Thomaz Rodrigues Porto da Cruz, cujos verbetes estão contidos neste Dicionário. E mais ainda, dois dos sergipanos acima citados chegaram a dirigir a Faculdade: João Francisco de Almeida e Thomaz Cruz. O primeiro, no período de1844 a 1855, com um detalhe peculiar: tornou-se diretor ainda como estudante de medicina, uma vez que sua formatura somente se deu em 1946. Seu quadro em óleo sobre tela está na Galeria dos Ex-Diretores da Faculdade, localizado no Gabinete da Diretoria. Thomaz Cruz, por sua vez, foi o 36º Diretor da Faculdade, de 1992 a 1996, sendo o primeiro eleito pela comunidade com resultado respeitado pela Congregação. A Bahia permaneceu como um grande receptor de estudantes de medicina oriundos de Sergipe até 1961, ano de fundação da nossa Faculdade de Medicina, por Antonio Garcia e colaboradores.
O Dicionário mostra ainda que muitos médicos, baianos de nascimento, após a formatura, migraram para Sergipe, contribuindo para o desenvolvimento da região, não só em função da sua profissão como também pela atuação destacada em outras áreas, na economia, nas letras, na educação e na política. É só verificar os verbetes de quatro deles, presentes no Dicionário e a seguir relacionados. Francisco Alberto de Bragança, formado pela faculdade primaz do Brasil em 1836, foi o primeiro médico da linhagem dos “braganças” que fincou raiz em nosso estado, mais precisamente em Laranjeiras, com inestimáveis serviços prestados à coletividade, na saúde pública e no campo educacional e cultural. Outro baiano que iniciou uma descendência fundamental na história de Sergipe foi Thomaz Rodrigues da Cruz.
Formado em 1871, após especialização no exterior, instalou-se em Maroim, onde exerceu a clínica, atuou na política como deputado provincial, vice-presidente da Província de Sergipe e senador da república recém instalada, com atuação destacada ainda na vida cultural e econômica de Sergipe, como fundador da Fábrica Sergipe Industrial ( em sociedade com o irmão mais velho João Rodrigues da Cruz) e do Banco de Sergipe em 1906, do qual foi presidente.
Já Domingos Guedes Cabral, formado em 1875, teve a sua tese “Funções do Cérebro” rejeitada pela Congregação da Faculdade de Medicina da Bahia, “por conter doutrinas contrárias à religião oficial do estado” e pelo seu total materialismo, inclusive preconizando que o interesse deveria ser só científico e livre das pregações bíblicas. Segundo informações oficiais, foi a primeira e a única tese doutoral reprovada pela Congregação da FMB. Para obter o diploma ele defendeu a tese “Qual o Melhor Tratamento da Febre Amarela?” Após a formatura, radicou-se em Laranjeiras, templo da medicina sergipana no século XIX, exercendo forte influência intelectual sobre os médicos republicanos. Finalmente, Francisco Sabino Coelho Sampaio, formado em 1841. Dois anos após transferiu-se para São Cristóvão onde clinicou e exerceu diversas funções públicas, sendo o médico que ocupou o cargo de Diretor de Saúde Pública em Sergipe por mais tempo, no século XIX.
Mas a corrente migratória para o nosso estado se estabeleceu de fato a partir da inauguração do Hospital Cirurgia em 1926, por Augusto Leite, no Governo de Graccho Cardoso, motivando a chegada de “especialistas” de várias partes do Brasil, que de logo se integraram à vida científica, política, cultural e econômica do estado, muitos deles com destacada atuação. Com a fundação da Faculdade de Medicina de Sergipe, 25 anos após, esse fenômeno foi ampliado, em função da necessidade de composição de um futuro corpo docente. Nesse período, que considero como “anos de ouro” da nossa medicina, nomes como Adel Nunes, Juliano Simões, Clóvis Franco, Gérson Pinto, Armando Domingues, Antero Pales Carozo, Aristóteles Augusto da Silva, Carlos Muricy, Delson Calheiros, Gileno Lima, Fraga Lima, José Leite Primo, José Pereira Carrera, Costa Pinto, Nestor Piva, Osvaldo de Souza, Renato Mazze Lucas, Dalmo Melo, Dietrich Todt, Adelmar Reis, Hugo e Hyder Gurgel, José Hamilton Maciel, todos eles com seus verbetes biográficos contidos neste Dicionário, vieram para Sergipe e aqui se destacaram em diversas áreas.
Oportuno registrar que alguns deles adotaram a terra de Tobias Barreto, em função de designação federal, por suas ligações funcionais com a Fundação Sesp e a Sucam, por exemplo. Esses e tantos outros fizeram a história da medicina de Sergipe. Como disse o escritor Will Durant, “a civilização é sempre mais velha que imaginamos e qualquer torrão que pisemos esconde ossos de homens e mulheres que, como nós, amaram, escreveram versos e fizeram coisas belas, mas cujos nomes e personalidades se perderam no indiferente fluxo do tempo”.
A presença do Dicionário Biográfico fará com que esses nomes nunca sejam esquecidos.
Acad. Lúcio Antônio Prado Dias
da Academia Sergipana de Medicina
Antônio Samarone de Santana
A pequena faixa de terra situada entre os rios Real e São Francisco, parte inicial da Capitania doada a Francisco Pereira Coutinho, somente foi ocupada pelos portugueses no final de 1590, na conhecida expedição punitiva chefiada por Cristóvão de Barros. A Província de Sergipe d’el-Rei, Império dos Tupinambás, semi-ocupada pelos holandeses em meados do século XVII, sobreviveu barbaramente, dependente da Bahia, por mais de dois séculos, no período colonial. A Santa Casa de Misericórdia chegou a Sergipe no alvorecer da colonização. Cristóvão de Barros era o Provedor da Santa Casa da Bahia. Entretanto, a presença de médicos é desconhecida por essas bandas nessa primeira fase. Durante todo o período colonial não se registrou sergipano algum formado em medicina. No início do século XIX apenas cinco médicos residiam em Sergipe.
O primeiro médico a se destacar por essas terras foi um alagoano de Penedo, Manoel Joaquim Fernandes de Barros, doutor em medicina pela Faculdade de Strasburgo e discípulo de Guy Lussac. Fernandes de Barros foi casado com uma sergipana, residiu e exerceu grande influência na vida política de Sergipe, chegando a ocupar a presidência da Província. Os primeiros sergipanos diplomados em medicina na Europa foram José de Barros Pimentel, formado em Paris, em 1841 e Manoel Antunes Salles, formado em Bruxelas, em 1844.
A partir do século XIX, com a constituição independente da Província de Sergipe (1824), separando-se da Bahia, uma plêiade de sergipanos começou a freqüentar os cursos oferecidos pelas recém criadas Faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro. A partir de Manuel Ladislau Aranha Dantas, o primeiro sergipano a se formar em 1832, vários outros seguiram o mesmo caminho. Alguns se destacaram: Joaquim José de Oliveira, nosso primeiro Provedor de Saúde; Sabino Olegário Ludgero Pinho, o divulgador da Homeopatia no Nordeste; Josino Corrêa Cotias, professor de medicina na Bahia; Tobias Rabelo Leite, introdutor do ensino de mudos no Brasil, entre outros. A partir da segunda metade do século XIX o número de sergipanos formados em medicina dispara. Vários seguiram a carreira militar, motivados pela guerra do Paraguai.
Entretanto, no período entre 1880 e 1910 ocorreu um curioso fenômeno com os sergipanos formados em medicina: o número de médicos ultrapassou a mais de duas centenas, e como o mercado de trabalho para esses profissionais era praticamente inexistente em Sergipe, eles migraram pelo Brasil, principalmente para São Paulo. O grande desenvolvimento econômico de São Paulo e a inexistência de uma Faculdade de Medicina criaram os espaços para os Sergipanos se destacarem. Vários municípios paulistas tiveram médicos sergipanos entre os seus desbravadores.
Na relação dos professores que fundaram a Faculdade de Medicina de São Paulo (1913) encontravam- se dois sergipanos: Ascendino Reis e Enjolras Vampré. Ocorreu em Sergipe uma diáspora de cérebros. Desse mesmo período seria injusto esquecer a contribuição de Abreu Fialho na constituição da oftalmologia enquanto especialidade; de Antônio Dias de Barros, professor catedrático de histologia no Rio de Janeiro; de Balthazar Vieira de Mello, fundador da higiene escolar em São Paulo; de Rodrigues Dória, professor de medicina e direito na Bahia; sem deixar de registrar a contribuição dos que ficaram na Terra, a exemplo de Antônio Militão de Bragança; e dos que conseguiram notoriedade (Manoel Bomfim, Felisbelo Freire e Silvério Fontes) por conta do desempenho em outros campos do conhecimento. A partir de 1926, com a construção do hospital de Cirurgia e do Instituto Parreiras Horta, um grupo de médicos cos sergipanos, liderados por Augusto Leite, resolve desenvolver a prática médica no estado. Walter Cardoso, Lauro Porto, Machado de Souza, Garcia Moreno, Juliano Simões, Ávila Nabuco, Josaphat Brandão, Francisco Fonseca, Helvécio Andrade, Jessé Fontes, Eronides Carvalho, Berillo Leite, entre outros, fizeram parte desse primeiro time.
O Hospital de Cirurgia se transformou num centro de atendimento e formação médica, organizando um centro de estudos, com publicação regular de uma revista médica por mais de dez anos. Foi esse movimento, somado ao desenvolvimento econômico ocorrido em Sergipe após a chegada da Petrobrás, inicio da década de 1960, que criaram as condições para o surgimento da nossa Faculdade de Medicina. Nessa fase destacou-se a atuação de Antônio Garcia Filho, primeiro Secretário de Saúde do estado, com participação decisiva para a viabilização da escola médica. Na segunda metade do século XX, ajudando a consolidar a Faculdade de Medicina, surgiram com grande brilho José Augusto Barreto, Nestor Piva, Alexandre Menezes, Cleovansóstenes Aguiar, Hyder Gurgel, Hugo Gurgel, Francisco Rollemberg, João Cardoso, Gilvan Rocha, Hamilton Maciel, Costa Pinto, Tarcísio Leão, entre outros. No final do século XX a medicina exercida em Sergipe estava organizada no mesmo patamar que nos grandes centros nacionais. Vários colegas continuam destacando-se nacionalmente em suas especialidades. Não os citarei para evitar esquecimentos constrangedores.
A finalidade desse dicionário é ajudar a recompor parte dessa memória. Um povo se transforma numa civilização quando possui raízes, conhece suas origens, sua evolução, sabe como chegou no momento presente. Possui sua cultura, suas lendas e seus mitos. Com uma profissão não é muito diferente. Não basta sabermos superficialmente que descendemos da medicina hipocrática, mesmo sem entendermos direito o que isso significa; precisamos entender como chegamos até aqui, e preservarmos a memória dos que ajudaram nessa construção.
Na sessão de abertura do 2º Congresso de Neurologia, Psiquiatria e Higiene Mental, em outubro de 1940, promovido pela Sociedade de Neurologia, Psiquiatria e Higiene Mental do Nordeste Brasileiro, em Aracaju, o grande Gilberto Freire afirmou: “De Sergipe, o brasileiro de outro Estado, por mais ignorante que seja da geografia, da paisagem, da produção agrícola, da atividade econômica deste pequeno, mas ilustre pedaço do Brasil, saberá sempre dizer, para caracterizar no mapa brasileiro a província sergipana: aqui há inteligência”. (Leia mais abaixo)
É sobre uma parte da história dessa inteligência que esse dicionário se debruça. Além da conhecida contribuição dos bacharéis (Tobias Barreto, Sílvio Romero, Gilberto Amado, etc.), o talento dos doutores não desmereceu a fama da pequena província de Sergipe d’el-Rei.
Acad. Antônio Samarone de Santana
Da Academia Sergipana de Medicina
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“Sergipe é um recanto do Brasil a que brasileiro nenhum pode ser indiferente, tão viva é a irradiação do gosto que se especializou no sergipano pelas coisas literárias e de cultura, tão denso é o conteúdo intelectual do seu passado, tão numerosos são os nomes de filhos desta província que, nos seus dias de colônia, se chamou d’el-Rei, na história das letras do nosso país. Letras que Sergipe tem enriquecido de príncipes”. “De Sergipe, o brasileiro de outro Estado, por mais ignorante que seja da geografia, da paisagem, da produção agrícola, da atividade econômica deste pequeno, mas ilustre pedaço do Brasil, saberá sempre dizer, para caracterizar no mapa brasileiro a província sergipana: aqui há inteligência”. “Inteligência e cultura. Cultura e dinamismo intelectual. O Brasil inteiro sabe o que é esse dinamismo porque em todos os recantos do país se tem feito sentir a inteligência sergipana através dos seus intelectuais jovens, dos seus doutores e bacharéis formados na Bahia, no Recife, no Rio, dos seus moços cheios de vida e entusiasmo espalhados pela magistratura, pelo magistério, pelo funcionalismo federal e dos Estados, pela imprensa, pela medicina,pela literatura, pelo exército, pela marinha, pelo clero, pela indústria, pelo comércio”.
Gilberto Freire
(Conferência proferida em outubro de 1940, na sessão de abertura do 2º Congresso de Neurologia, Psiquiatria e Higiene Mental, promovido pela Sociedade de Neurologia, Psiquiatria e Higiene Mental do Nordeste Brasileiro, em Aracaju, Sergipe )