Dr. Augusto Leite na medicina de Sergipe
Petrônio Andrade Gomes
Findo o curso secundário, inicia-se a grande jornada do Dr. Augusto Leite. Embarcando no vapor Murupi em direção ao Rio de Janeiro em 1903, para fazer o curso de medicina, forma-se no dia 2 de janeiro de 1909, com a tese “Da contra-indicação renal ao emprego do salicilato de sódio”, sob a inspiração do prof. Miguel Couto. Nas férias que teve durante o curso, passava em Riachuelo, onde ajudava o irmão, Sílvio Leite, já médico, em pequenas operações. Em 3 de maio de 1909, acompanhado pelos amigos Gonçalo Rollemberg, Acioli, Manoel Cruz e José de Faro, segue para Capela, instalando-se no sobrado do sr. José Luiz Coelho Campos. Dois dias após, recebe seu primeiro chamado, nada mais nada menos que do Sr.Leandro Maciel. Montado a cavalo, dormiu no engenho Entre Rios, voltando a Capela no outro dia. Foi em Capela que se entregou de corpo e alma ao estudo da medicina, propiciado pela escassa clientela de então. Permaneceu lá por tres meses. Ganhou experiência e segurança. Mudou-se para Maroim, também com estadia curta, por volta de 100 dias. Em novembro já estava em Aracaju, cidade sem transporte, sem calçamento. As visitas eram feitas a pé, vestido de fraque, bengala e chapéu. A clínica era feita através das mãos, dos olhos, ouvidos, fazendo uso também do olfato e até do gosto. Chegou a operar em residências, em casebres de palha, à luz de querosene.
Em 1913 começa a trabalhar no Hospital Santa Isabel, a convite do desembargador Simeão Sobral. Único hospital existente em Aracaju, com apenas duas enfermarias, sem raios X, laboratório, autoclave, com pouco instrumental cirúrgico, alguns vidros de ventosas e um termo-cautério. Envolto àquela época no mais completo caos, crianças e adultos misturavam-se, não importando as doenças que elas carregavam consigo. A única separação era pelo sexo. Iluminação adequada, higiene, nem pensar! Eram realizadas apenas pequenas intervenções cirúrgicas, aqui e acolá uma amputação. Operava-se na própria sala de curativos, numa mesa de lastro de madeira. Segundo Dr. Augusto, era o que havia de mais moderno em Sergipe… Só para imaginar quão anti-higiênico era aquele nosocômio, o Dr. Pimentel Franco (chefe do Serviço de Mulheres) visitava a sua enfermaria acompanhado de um serviçal portando um fogareiro, o qual exalava incenso ou alcatrão, para afastar o terrível odor.
Viaja para a Europa em junho do mesmo ano, passando 6 meses em Paris, onde toma mais gosto pela Clínica Cirúrgica. Retorna a Sergipe com algum material cirúrgico, reiniciando o trabalho no mesmo Hospital Santa Isabel, onde criou o Serviço de Clínica Cirúrgica. Enfronhou-se na lide cirúrgica, aperfeiçoando-se em cadáveres e com as dores dos pacientes.
Em 9 de novembro de 1914 faz sua primeira laparotomia, fato histórico para a medicina sergipana. O anestésico era o clorofórmio, os ajudantes eram colegas (Silvio Leite, Theodureto, Aristides Fontes, Josaphat Brandão, Carlos Menezes, Jessé Fontes, Moacyr Leite) apanhados na rua ou mesmo nos consultórios. Realizou neste Hospital mais de 400 laparotomias. Em 1918 viu-se envolvido num rumoroso caso médico, degladiando-se com o Dr. Helvécio de Andrade, que tomou como algoz. Defendeu-se e partiu para o ataque sem ter sido acusado, foi à imprensa e aos tribunais, trocou correspondência com sumidades médicas de outros estados e colegas da cidade. Desgastado pelo caso, mudou-se para Recife por alguns anos. De volta a Aracaju, reiniciou seus trabalhos como cirurgião, até que numa noite, durante um jantar com médicos em homenagem ao Dr. Paulo Parreiras Horta, estando presente o Governador do Estado, Maurício Graccho Cardoso, definiu-se pela construção do “meio cirúrgico”, tão almejado pelo nosso ilustre colega. Com a pedra fundamental colocada em 1924, inaugurado oficialmente em 2 de maio de 1926 e de fato em julho de 1926 com apenas 6 médicos, construído pedra por pedra sob o olhar vigilante e atento do Dr. Augusto, o Hospital de Cirurgia é mais um fato histórico para a medicina sergipana.
Mesmo com a inauguração do Hospital de Cirurgia não deixou de operar no H. Santa Isabel, embora com dedicação maior ao primeiro, algo bastante natural. Ora, com a construção de um novo hospital em Aracaju, com capacidade para fazer cirurgias de alta complexidade para a época, é óbvio que houvesse diminuição do movimento operatório no Hospital Santa Isabel. Em virtude disso, a direção do mesmo, tendo à frente o Almirante Amynthas José Jorge, ao lado de outros membros, como os Srs. Austeclino Rocha, Guilhermino Chaves de Resende, Guilherme Nabuco Maciel, em reunião extraordinária do Conselho Administrativo em 1º de outubro de 1926, resolveu extinguir a “alta cirurgia”, como se denominava as cirurgias de grande porte de então, aumentando os leitos de clínica médica. Tomaram o máximo cuidado em comunicar tal medida ao Dr. Augusto Leite, em especial, devido aos relevantes serviços que prestara ao hospital, deixando claro que “o grande cirurgião” continuaria “a dispor incondicionalmente do referido Hospital”. Tal fato desagradou profundamente o grande cirurgião, respondendo com uma carta em desagravo a tal medida, jurando que nunca mais poria os pés naquele Hospital. Isso mostra o orgulho e a forte personalidade do Dr. Augusto, que não admitia ser contestado. Já no Hospital Cirurgia, em 22 de março de 1927 realiza a primeira histerectomia total por via vaginal e em 5 de maio do mesmo ano a primeira mastectomia com limpeza dos gânglios axilares. Daí por diante, só conquistas: a Maternidade Francino Melo, onde em 13 de junho de 1931 nasce a primeira criança, que ganha o nome de Maria Augusta; serviços de radioterapia, radiologia, medicina e cirurgia experimental, Centro de Estudos, anátomo-patologia (aonde chegou a possuir mais de 2000 peças). Defensor intransigente da criança, instala em 24 de junho de 1933 o Instituto de Proteção e Assistência à Infância de Sergipe. Também é de sua responsabilidade o Serviço de Assistência Obstétrica Domiciliar.
Mais anos se passam e eis que surge Dr. Gileno Lima para quebrar o orgulho do mestre. Por dois anos, pacientemente, tenta convencer o amigo e admirador Dr. Augusto a retornar ao H. Santa Isabel. E consegue! No dia 9 de novembro de 1964, trazido pelo diretor do H. Santa Isabel, o inesquecível Dr. Gileno Lima, o grande cirurgião refaz a mesma cirurgia que fizera há 50 anos, retirando um grande fibroma uterino. E vem o gesto nobre de reconhecimento e veneração: doa ao Hospital Santa Isabel o “Bisturi de Ouro” que havia recebido em 1959 da classe médica sergipana, em comemoração ao seu cinqüentenário de formatura. Gileno recebe o “bisturi” e o coloca num nicho em parede do referido Hospital. Nas futuras reformas do hospital, paredes foram derrubadas mas o bisturi foi guardado. Em 2007, em visita ao Hospital, membros da Academia Sergipana de Medicina ( Drs. Lúcio Prado, Antônio Samarone, Hamilton Maciel e eu ) descobriram o bisturi, cuidadosamente guardado por uma antiga funcionária do Hospital, dona Helena, numa gaveta de sua mesa de trabalho, envolto por um papel.
Esse bisturi foi gentilmente doado pelo Dr. José Carlos Pinheiro (atual diretor do Hospital) à Academia Sergipana de Medicina, orgulhosamente trazido por mim ao Museu Médico da Somese, onde repousa. Paralelo à sua carreira médica, enfronhou-se pela política, chegando a ser senador constituinte, chefe de partido político, com ação destacadíssima. Seus embates na tribuna eram sempre escorreitos, límpidos. Mas a medicina foi mais forte, optando por abandonar a política em 1937, para gáudio nosso. Sua maior obra foi, sem sombra de dúvida, o Hospital Cirurgia. Era sua maior paixão, inegavelmente.
Enquanto vida e saúde teve, ia todos os dias ao Hospital, com seu corpo franzino e pequenino em altura, mas com uma alma gigantesca, a percorrer todas as dependências, olhando tudo e a todos, inquirindo e cobrando. Nascido em 1886 em Laranjeiras, faleceu em 1978, em Aracaju, com 91 anos, e está sepultado no Cemitério Santa Isabel.
Acad. Petrônio Andrade Gomes
Da Academia Sergipana de Medicina