Os médicos sergipanos
Antônio Samarone de Santana
A pequena faixa de terra situada entre os rios Real e São Francisco, parte inicial da Capitania doada a Francisco Pereira Coutinho, somente foi ocupada pelos portugueses no final de 1590, na conhecida expedição punitiva chefiada por Cristóvão de Barros. A Província de Sergipe d’el-Rei, Império dos Tupinambás, semi-ocupada pelos holandeses em meados do século XVII, sobreviveu barbaramente, dependente da Bahia, por mais de dois séculos, no período colonial. A Santa Casa de Misericórdia chegou a Sergipe no alvorecer da colonização. Cristóvão de Barros era o Provedor da Santa Casa da Bahia. Entretanto, a presença de médicos é desconhecida por essas bandas nessa primeira fase. Durante todo o período colonial não se registrou sergipano algum formado em medicina. No início do século XIX apenas cinco médicos residiam em Sergipe.
O primeiro médico a se destacar por essas terras foi um alagoano de Penedo, Manoel Joaquim Fernandes de Barros, doutor em medicina pela Faculdade de Strasburgo e discípulo de Guy Lussac. Fernandes de Barros foi casado com uma sergipana, residiu e exerceu grande influência na vida política de Sergipe, chegando a ocupar a presidência da Província. Os primeiros sergipanos diplomados em medicina na Europa foram José de Barros Pimentel, formado em Paris, em 1841 e Manoel Antunes Salles, formado em Bruxelas, em 1844.
A partir do século XIX, com a constituição independente da Província de Sergipe (1824), separando-se da Bahia, uma plêiade de sergipanos começou a freqüentar os cursos oferecidos pelas recém criadas Faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro. A partir de Manuel Ladislau Aranha Dantas, o primeiro sergipano a se formar em 1832, vários outros seguiram o mesmo caminho. Alguns se destacaram: Joaquim José de Oliveira, nosso primeiro Provedor de Saúde; Sabino Olegário Ludgero Pinho, o divulgador da Homeopatia no Nordeste; Josino Corrêa Cotias, professor de medicina na Bahia; Tobias Rabelo Leite, introdutor do ensino de mudos no Brasil, entre outros. A partir da segunda metade do século XIX o número de sergipanos formados em medicina dispara. Vários seguiram a carreira militar, motivados pela guerra do Paraguai.
Entretanto, no período entre 1880 e 1910 ocorreu um curioso fenômeno com os sergipanos formados em medicina: o número de médicos ultrapassou a mais de duas centenas, e como o mercado de trabalho para esses profissionais era praticamente inexistente em Sergipe, eles migraram pelo Brasil, principalmente para São Paulo. O grande desenvolvimento econômico de São Paulo e a inexistência de uma Faculdade de Medicina criaram os espaços para os Sergipanos se destacarem. Vários municípios paulistas tiveram médicos sergipanos entre os seus desbravadores.
Na relação dos professores que fundaram a Faculdade de Medicina de São Paulo (1913) encontravam- se dois sergipanos: Ascendino Reis e Enjolras Vampré. Ocorreu em Sergipe uma diáspora de cérebros. Desse mesmo período seria injusto esquecer a contribuição de Abreu Fialho na constituição da oftalmologia enquanto especialidade; de Antônio Dias de Barros, professor catedrático de histologia no Rio de Janeiro; de Balthazar Vieira de Mello, fundador da higiene escolar em São Paulo; de Rodrigues Dória, professor de medicina e direito na Bahia; sem deixar de registrar a contribuição dos que ficaram na Terra, a exemplo de Antônio Militão de Bragança; e dos que conseguiram notoriedade (Manoel Bomfim, Felisbelo Freire e Silvério Fontes) por conta do desempenho em outros campos do conhecimento. A partir de 1926, com a construção do hospital de Cirurgia e do Instituto Parreiras Horta, um grupo de médicos cos sergipanos, liderados por Augusto Leite, resolve desenvolver a prática médica no estado. Walter Cardoso, Lauro Porto, Machado de Souza, Garcia Moreno, Juliano Simões, Ávila Nabuco, Josaphat Brandão, Francisco Fonseca, Helvécio Andrade, Jessé Fontes, Eronides Carvalho, Berillo Leite, entre outros, fizeram parte desse primeiro time.
O Hospital de Cirurgia se transformou num centro de atendimento e formação médica, organizando um centro de estudos, com publicação regular de uma revista médica por mais de dez anos. Foi esse movimento, somado ao desenvolvimento econômico ocorrido em Sergipe após a chegada da Petrobrás, inicio da década de 1960, que criaram as condições para o surgimento da nossa Faculdade de Medicina. Nessa fase destacou-se a atuação de Antônio Garcia Filho, primeiro Secretário de Saúde do estado, com participação decisiva para a viabilização da escola médica. Na segunda metade do século XX, ajudando a consolidar a Faculdade de Medicina, surgiram com grande brilho José Augusto Barreto, Nestor Piva, Alexandre Menezes, Cleovansóstenes Aguiar, Hyder Gurgel, Hugo Gurgel, Francisco Rollemberg, João Cardoso, Gilvan Rocha, Hamilton Maciel, Costa Pinto, Tarcísio Leão, entre outros. No final do século XX a medicina exercida em Sergipe estava organizada no mesmo patamar que nos grandes centros nacionais. Vários colegas continuam destacando-se nacionalmente em suas especialidades. Não os citarei para evitar esquecimentos constrangedores.
A finalidade desse dicionário é ajudar a recompor parte dessa memória. Um povo se transforma numa civilização quando possui raízes, conhece suas origens, sua evolução, sabe como chegou no momento presente. Possui sua cultura, suas lendas e seus mitos. Com uma profissão não é muito diferente. Não basta sabermos superficialmente que descendemos da medicina hipocrática, mesmo sem entendermos direito o que isso significa; precisamos entender como chegamos até aqui, e preservarmos a memória dos que ajudaram nessa construção.
Na sessão de abertura do 2º Congresso de Neurologia, Psiquiatria e Higiene Mental, em outubro de 1940, promovido pela Sociedade de Neurologia, Psiquiatria e Higiene Mental do Nordeste Brasileiro, em Aracaju, o grande Gilberto Freire afirmou: “De Sergipe, o brasileiro de outro Estado, por mais ignorante que seja da geografia, da paisagem, da produção agrícola, da atividade econômica deste pequeno, mas ilustre pedaço do Brasil, saberá sempre dizer, para caracterizar no mapa brasileiro a província sergipana: aqui há inteligência”. (Leia mais abaixo)
É sobre uma parte da história dessa inteligência que esse dicionário se debruça. Além da conhecida contribuição dos bacharéis (Tobias Barreto, Sílvio Romero, Gilberto Amado, etc.), o talento dos doutores não desmereceu a fama da pequena província de Sergipe d’el-Rei.
Acad. Antônio Samarone de Santana
Da Academia Sergipana de Medicina
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“Sergipe é um recanto do Brasil a que brasileiro nenhum pode ser indiferente, tão viva é a irradiação do gosto que se especializou no sergipano pelas coisas literárias e de cultura, tão denso é o conteúdo intelectual do seu passado, tão numerosos são os nomes de filhos desta província que, nos seus dias de colônia, se chamou d’el-Rei, na história das letras do nosso país. Letras que Sergipe tem enriquecido de príncipes”. “De Sergipe, o brasileiro de outro Estado, por mais ignorante que seja da geografia, da paisagem, da produção agrícola, da atividade econômica deste pequeno, mas ilustre pedaço do Brasil, saberá sempre dizer, para caracterizar no mapa brasileiro a província sergipana: aqui há inteligência”. “Inteligência e cultura. Cultura e dinamismo intelectual. O Brasil inteiro sabe o que é esse dinamismo porque em todos os recantos do país se tem feito sentir a inteligência sergipana através dos seus intelectuais jovens, dos seus doutores e bacharéis formados na Bahia, no Recife, no Rio, dos seus moços cheios de vida e entusiasmo espalhados pela magistratura, pelo magistério, pelo funcionalismo federal e dos Estados, pela imprensa, pela medicina,pela literatura, pelo exército, pela marinha, pelo clero, pela indústria, pelo comércio”.
Gilberto Freire
(Conferência proferida em outubro de 1940, na sessão de abertura do 2º Congresso de Neurologia, Psiquiatria e Higiene Mental, promovido pela Sociedade de Neurologia, Psiquiatria e Higiene Mental do Nordeste Brasileiro, em Aracaju, Sergipe )