Lembranças que não fenecem
Lúcio Antônio Prado Dias
Mário Cabral, intelectual sergipano de saudosa memória, que adotou a Bahia para viver, no livro “Jornal da Noite” disse: “Porque o horrível da vida não é a morte em si mesma. É o apagamento do seu nome, da sua história, da sua lembrança, do que você fez, amou ou sofreu. É o esquecimento, a diluição da imagem, a dispersão do saber como se fora um sacrário violado”. Outro sergipano, Thomaz Cruz, luminar da medicina brasileira, que emprestou à Bahia ciência e inteligência, contribuindo para o desenvolvimento científico e cultural daquele estado, na apresentação do livro “Perfis do meu apreço”, de sua autoria, demonstra toda a preocupação com a preservação da memória: “A sociedade atual, seja em que âmbito for, está carecendo de paradigmas. Percebe-se a ausência de modelos a imitar, a falta de exemplos a seguir, a necessidade de padrões”.
O sentimento contido nas expressões de Mário e Thomaz, no meu entender, justifica o lançamento do Dicionário Biográfico de Médicos de Sergipe – séculos XIX e XX. Para sua concretização, passaram-se quatro anos de pesquisa. Da obra memorável de Armindo Guaraná, compusemos a base, que foi atualizada com informações obtidas em fontes documentais, livros e jornais, bibliotecas e arquivos públicos e privados, igrejas, cartórios e cemitérios, visitas a cidades interioranas e suas prefeituras, informações colhidas com amigos e familiares e registros do Conselho Regional de Medicina de Sergipe.
Pelos objetivos a que se propõe, é evidente que ele não se encerra nesta publicação, ao contrário, apenas inicia a caminhada e instiga a imaginação. Por certo futuras edições virão, para torná-lo o mais abrangente possível.
Recuperar nomes de médicos perdidos nas trevas não foi tarefa fácil, mas extremamente gratificante. As dificuldades para o levantamento de dados, que pareciam intransponíveis, foram gradativamente sendo superadas. E as informações estão agora à disposição de todos, em primeira edição. Decidimos acrescentar um capítulo dedicado aos médicos com verbetes incompletos, na esperança de que a sua leitura possa despertar a curiosidade e o interesse dos leitores que tenham maiores informações e possam vir a contribuir para o seu aperfeiçoamento.
Um fato se destaca na análise de seu conteúdo, observando os registros de aproximadamente quinhentos médicos que tiveram suas biografias levantadas na forma de verbetes: a esmagadora maioria colou grau pela bicentenária Faculdade de Medicina da Bahia. Para compreender a importância desse fato, somente no século XIX, no período compreendido entre 1808 (ano de fundação da Faculdade) e 1900, segundo registros oficiais da instituição, 124 formandos eram procedentes de Sergipe, sendo o estado brasileiro que mais enviou estudantes para a Faculdade, excetuando-se obviamente a própria Bahia. A proximidade geográfica naturalmente foi um fator preponderante para a determinação desse índice. O mesmo dado se observou na primeira metade do século XX.
Vale ressaltar que a participação dos sergipanos não se restringiu apenas ao objetivo único de receber o “anel de doutor”. No que tange à Faculdade de Medicina da Bahia, Sergipe ofereceu inestimável contribuição, com vários de seus filhos, após concluírem o curso, honrando o quadro docente da instituição. Assim aconteceu com o primeiro sergipano formado em medicina na Bahia, em 1831, ano em que Dom João VI abdicou a Coroa do Brasil, assumindo o governo a Regência Trina Provisória. Refiro-me a Manoel Ladislau Aranha Dantas, natural de São Cristóvão, que foi professor Catedrático(Lente) de Patologia Externa. Ele foi Lembranças que não fenecem ainda o segundo memorialista da faculdade, em 1855. Em 1866, já em idade avançada, serviu na Guerra do Paraguai, nos hospitais de sangue. Seu quadro em óleo sobre tela faz parte da Galeria dos Professores Catedráticos e Titulares da Sala da Congregação da Faculdade de Medicina da Bahia.
Outros sergipanos também foram professores da Faculdade de Medicina da Bahia: João Francisco de Almeida, Jerônimo Sodré Pereira, Manoel Dantas, Guilherme Pereira Rebelo, Josino Corrêa Cotias, José Rodrigues da Costa Dória, Anita Guiomar Franco Teixeira, Maria de Lourdes Burgos e Thomaz Rodrigues Porto da Cruz, cujos verbetes estão contidos neste Dicionário. E mais ainda, dois dos sergipanos acima citados chegaram a dirigir a Faculdade: João Francisco de Almeida e Thomaz Cruz. O primeiro, no período de1844 a 1855, com um detalhe peculiar: tornou-se diretor ainda como estudante de medicina, uma vez que sua formatura somente se deu em 1946. Seu quadro em óleo sobre tela está na Galeria dos Ex-Diretores da Faculdade, localizado no Gabinete da Diretoria. Thomaz Cruz, por sua vez, foi o 36º Diretor da Faculdade, de 1992 a 1996, sendo o primeiro eleito pela comunidade com resultado respeitado pela Congregação. A Bahia permaneceu como um grande receptor de estudantes de medicina oriundos de Sergipe até 1961, ano de fundação da nossa Faculdade de Medicina, por Antonio Garcia e colaboradores.
O Dicionário mostra ainda que muitos médicos, baianos de nascimento, após a formatura, migraram para Sergipe, contribuindo para o desenvolvimento da região, não só em função da sua profissão como também pela atuação destacada em outras áreas, na economia, nas letras, na educação e na política. É só verificar os verbetes de quatro deles, presentes no Dicionário e a seguir relacionados. Francisco Alberto de Bragança, formado pela faculdade primaz do Brasil em 1836, foi o primeiro médico da linhagem dos “braganças” que fincou raiz em nosso estado, mais precisamente em Laranjeiras, com inestimáveis serviços prestados à coletividade, na saúde pública e no campo educacional e cultural. Outro baiano que iniciou uma descendência fundamental na história de Sergipe foi Thomaz Rodrigues da Cruz.
Formado em 1871, após especialização no exterior, instalou-se em Maroim, onde exerceu a clínica, atuou na política como deputado provincial, vice-presidente da Província de Sergipe e senador da república recém instalada, com atuação destacada ainda na vida cultural e econômica de Sergipe, como fundador da Fábrica Sergipe Industrial ( em sociedade com o irmão mais velho João Rodrigues da Cruz) e do Banco de Sergipe em 1906, do qual foi presidente.
Já Domingos Guedes Cabral, formado em 1875, teve a sua tese “Funções do Cérebro” rejeitada pela Congregação da Faculdade de Medicina da Bahia, “por conter doutrinas contrárias à religião oficial do estado” e pelo seu total materialismo, inclusive preconizando que o interesse deveria ser só científico e livre das pregações bíblicas. Segundo informações oficiais, foi a primeira e a única tese doutoral reprovada pela Congregação da FMB. Para obter o diploma ele defendeu a tese “Qual o Melhor Tratamento da Febre Amarela?” Após a formatura, radicou-se em Laranjeiras, templo da medicina sergipana no século XIX, exercendo forte influência intelectual sobre os médicos republicanos. Finalmente, Francisco Sabino Coelho Sampaio, formado em 1841. Dois anos após transferiu-se para São Cristóvão onde clinicou e exerceu diversas funções públicas, sendo o médico que ocupou o cargo de Diretor de Saúde Pública em Sergipe por mais tempo, no século XIX.
Mas a corrente migratória para o nosso estado se estabeleceu de fato a partir da inauguração do Hospital Cirurgia em 1926, por Augusto Leite, no Governo de Graccho Cardoso, motivando a chegada de “especialistas” de várias partes do Brasil, que de logo se integraram à vida científica, política, cultural e econômica do estado, muitos deles com destacada atuação. Com a fundação da Faculdade de Medicina de Sergipe, 25 anos após, esse fenômeno foi ampliado, em função da necessidade de composição de um futuro corpo docente. Nesse período, que considero como “anos de ouro” da nossa medicina, nomes como Adel Nunes, Juliano Simões, Clóvis Franco, Gérson Pinto, Armando Domingues, Antero Pales Carozo, Aristóteles Augusto da Silva, Carlos Muricy, Delson Calheiros, Gileno Lima, Fraga Lima, José Leite Primo, José Pereira Carrera, Costa Pinto, Nestor Piva, Osvaldo de Souza, Renato Mazze Lucas, Dalmo Melo, Dietrich Todt, Adelmar Reis, Hugo e Hyder Gurgel, José Hamilton Maciel, todos eles com seus verbetes biográficos contidos neste Dicionário, vieram para Sergipe e aqui se destacaram em diversas áreas.
Oportuno registrar que alguns deles adotaram a terra de Tobias Barreto, em função de designação federal, por suas ligações funcionais com a Fundação Sesp e a Sucam, por exemplo. Esses e tantos outros fizeram a história da medicina de Sergipe. Como disse o escritor Will Durant, “a civilização é sempre mais velha que imaginamos e qualquer torrão que pisemos esconde ossos de homens e mulheres que, como nós, amaram, escreveram versos e fizeram coisas belas, mas cujos nomes e personalidades se perderam no indiferente fluxo do tempo”.
A presença do Dicionário Biográfico fará com que esses nomes nunca sejam esquecidos.
Acad. Lúcio Antônio Prado Dias
da Academia Sergipana de Medicina